Viagem às duas fábricas do sonho

Em Bucelas ou em S. Marcos, ambas nos arredores de Lisboa, o dia começa cedo e acaba tarde. Nos estúdios da Plural e da SP Televisão, as duas produtoras galardoadas com um Emmy, produtores, costureiras, electricistas, cenógrafos e centenas de outros profissionais trabalham para dar brilho aos actores. Entrar no mundo que faz as histórias da televisão é entrar numa espécie de planeta de sonho composto por duas cidades: a da Plural, que alimenta em exclusivo a TVI e está aberta a outros operadores, e a da SP Televisão, que tem fornecido conteúdos para a RTP e para a SIC. Nestas duas cidades, a vida começa à mesma hora. Às oito da manhã chegam as costureiras, abrem as lojas de roupa, de sapatos e de móveis, os minimercados e drogarias, também os cafés e cabeleireiros. Até parece de brincar, mas não é. Em ambas, o ponto de partida é o mesmo: basta um guião... E as cidades mexem-se. A toda a velocidade! É assim o quotidiano de uma indústria que, em 20 anos, se tornou referência internacional. E o segundo Emmy para melhor telenovela, entregue a Laços de Sangue, da SIC - após Meu Amor, na TVI, em 2010 - na passada segunda-feira, veio medalhar as fábricas que começaram a ter êxito em 1999, quando as produções portuguesas ultrapassaram as brasileiras da Globo, exibidas pela SIC. Hoje, onze anos volvidos sobre esse marco, conquistado pela TVI de José Eduardo Moniz, Portugal emite diariamente 1351 horas (dados de 2010) de ficção feita dentro de portas, das quais 1071 chegam ao espectador entre as 19.00 e as 23.00. A indústria, que prende milhões de pessoas, alimenta, com alto nível concorrencial, a taxa de consumo televisivo e está profissionalizada. A Plural e a SP Televisão são o exemplo máximo disso.

Maquilhagem, guarda-roupa... "acção"!

Às oito em ponto, a Quinta dos Melos, em Bucelas, nos arredores de Lisboa, desperta com a chegada dos maquilhadores e cabeleireiros, das actrizes e dos actores. Meia hora depois, os técnicos em cena começam a gritar "acção!" e as estrelas que fazem as novelas da TVI começam a desfiar os diálogos que estudaram na véspera. A 45 quilómetros, em São Marcos, no Cacém, local onde estão instalados os estúdios da SP Televisão, o horário é semelhante. Entre as 08.00 e as 08.30, os camarins têm de estar prontos com a roupa e adereços que cada personagem vai usar. "Todos os dias, a roupa é recolhida, separada, lavada, passada e devolvida à produção", conta Marisa Ferreira, responsável pelo acervo de guarda-roupa da Plural e onde podem ser encontrados, por exemplo, mais de cinco mil pares de sapatos, quatro mil gravatas, incontáveis vestidos, colares, casacos, calças, camisas e até "silicone ou barrigas de grávida para todos os meses". Neste departamento, trabalham duas modistas e cinco costureiras. É das suas mãos que nascem os esotéricos vestidos da Hortense [Sofia Alves] de Remédio Santo. É a figurinista Teresa Alves quem os desenha, quem procura os tecidos e quem controla as "mais de mil peças" afectas à trama. "No caso da Hortense, que é uma mulher fora de tempo, crio tudo de raiz. Sou eu que compro os tecidos e até vou ao mercado", conta à Notícias TV. Maria Conceição Silva tem o seu próprio atelier em São Marcos. Sozinha, compõe o último modelito para Maria Emília Correia,a Alzira de Rosa Fogo (SIC). "É um vestido para uma ocasião especial", confidencia a modista, que diz ter a seu cargo "todas as personagens". O guarda-roupa da novela tem acondicionados, pelo nome da personagem e por ordem alfabética, todas as peças de mais de 40 pessoas. Enérgica, Carmo Boucinha mostra as centenas de fardas e de roupa de época que a SP Televisão também tem, enquanto recorda um episódio recente da novela Rosa Fogo. "Para fazer o primeiro episódio, e de maneira a vestir a Cláudia Vieira e todos os bailarinos, fizemos quase 20 peças, entre bodies, coletes e calças, em quatro dias", conta.

Os mil e um objectos

Os cenários são estudados até à exaustão e neles convergem vários departamentos desta indústria. A SP Televisão, por exemplo, tem à mão a maqueta - como se de um atelier de arquitectura se tratasse - do centro hospitalar onde é gravada Maternidade, da RTP. "Foi desenhada e maquetada tendo em conta a iluminação", adianta quem conhece o processo. Depois, é preciso construir! A Plural tem uma empresa só para o efeito (EPC). "Começámos a guardar as peças desde a novela Cinzas, em 1992", recorda Paulo Moreira, encarregado de gerir mais de três mil metros quadrados de... tudo e mais alguma coisa que possa ser posto em cena. "Temos mais de 80 camas diferentes, 200 sofás, mais de mil quadros", enumera este responsável enquanto cruza os corredores mostrando carpetes, candeeiros, faqueiros, serviços de louça, máquinas diversas, santos. Até um bolo de noiva! "Neste momento, já é possível vir buscar a estes armazéns cerca de 80 por cento de cada produção, fazendo depois alterações", conta Moreira. As casas dos ricos é que exigem, quase sempre, compras extras. Cada novela tem, por conseguinte, o seu departamento particular. Sónia Henrique sabe os guiões de Remédio Santo de cor. Afinal, lê todas as cenas e faz o levantamento dos objectos necessários para cada cena. "Nós aqui tratamos de tudo o que não é mobiliário", atesta, rodeada de coroas de flores, urnas, garrafas de cerveja de uma marca acabada de criar na produtora, pacotes de sumo, leite e pão para "pequenos-almoços faz-de-conta", telemóveis, malas de viagens e até diversas imagens da Santinha da Luz [Sara Barradas]. "Temos vários modelos porque as bonecas, na novela, são vendidas em banca", conta Sónia. Na SP Televisão, os adereços da premiada série Cidade Despida, exibida na RTP1, evocam o crime organizado e a economia paralela. Obviamente autorizada, Dulce Machado conta, com orgulho, que "todos os homicídios foram adereçados aqui", enquanto mostra notas e documentos falsos. Cheques e passaportes aldrabados, mas com as caras dos actores conhecidos. Até armas arranjaram para ser a sério o que, de verdade, é a brincar.

Os cérebros das operações

Para lá do que está em cena, é necessária a preparação. A planificação é um dos maiores puzzles que se resolvem todos os dias, quer na SP Televisão quer na Plural. Este departamento tem a obrigação de organizar todas as tarefas e qualquer distracção pode custar muito caro às produtoras. "Todos os dias cortamos os guiões e dividimos por cenas. Depois, esses papéis são cortados em tiras e dispostos por actores, por dias", conta quem executa o procedimento. "Temos de organizar as gravações por exteriores e interiores, gerir as indisponibilidades dos actores, as equipas técnicas, colocar por dia um mínimo de 20 cenas, cumprir o tempo estabelecido de produção e tentar não dar saltos emocionais na história para não prejudicar o trabalho de quem representa", conta uma dos responsáveis. Já está cansado? Imagine eles... ao fim do dia! A fase final de produção também é de muita concentração. Miguel Oliveira é o responsável de edição e, por isso, o último a ver todos os episódios de Rosa Fogo [e também de Laços de Sangue] antes de os entregar ao canal. "Recebemos as cenas em separado e montamos com o guião ao lado. Daqui saem 45 minutos por dia de imagens tratadas e prontas a ir para o ar. Um episódio é, em média, um terço do total de gravações", explica o editor. Industrializada há mais anos do que a SP, a Plural tem uma empresa de Meios Técnicos (EMAV) e inclusivamente laboratórios. Miguel Amorim, responsável por este departamento que também serve as operações especiais e de futebol da TVI, adianta que algumas das oficinas são praticamente únicas no País inteiro. Aqui arranjam-se lentes e punhos, electrónica, mecânica e fazem-se ajustes de pormenores das câmaras. Por isso, não há razões para a máquina parar!

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