Mulher forte, de verbo e gargalhada fáceis, Júlia Pinheiro vai a jogo. Há um ano na SIC, ainda não conseguiu reconquistar o público que lhe foi fiel ao longo de anos. Ela não desarma. Acredita que vai ser líder. Até lá, assume a postura de guerreira. Mas comove-se a falar de Goucha, de Cristina e de Henrique Mendes.
Na TVI, as tardes eram da Júlia. Um ano depois, as manhãs estão longe de ser da Júlia. Estava preparada para perder?
Como é óbvio. A televisão é feita de ciclos longos, é precisa muita paciência, muita persistência. Só quem não percebe nada de televisão é que podia estar à espera que eu chegasse e começasse logo a vencer. Eu sabia que vinha perder, que vinha perder por muito e que ia perder durante muito tempo. Não é surpresa.
Mas perder que reação lhe provoca? Preocupa-a, entristece-a, enfurece-a?
Ninguém gosta de perder (gargalhada). Eu sou aquilo que se chama uma senhora de idade (risos). Tenho 20 anos de profissão. E, portanto, uma profissional com estas caraterísticas tem de ter uma capacidade racional de leitura dos resultados. E quem vive há dez anos próximo de estruturas diretivas e as integra tem de saber ler os resultados, os ciclos, as movimentações e a maturidade dos produtos.
Até quando é que acha que vai perder?
Não sei. Nos últimos tempos, tenho conseguido muitas vezes melhores resultados do que a Praça da Alegria. É muito arriscado fazer essas previsões, é muito arriscado. Não sei. Ninguém sabe o que vai acontecer. Não depende só do mérito ou demérito dos meus concorrentes. Tem que ver com a antena, tem que ver com a capacidade de recolocar a SIC próxima dos nossos espectadores. Temos de ter formatos abertos. Defendo isso desde sempre. Não nos podemos fechar, temos de sentir a respiração do público.
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Mas sente que o público não percebeu a sua mudança da TVI para a SIC? Os seus espectadores castigaram-na?
Não diria castigar (risos). Mas deixe-me fazer um ponto prévio. Ninguém tem espectadores. Não acredito nada naquela frase "o meu público". Não acredito em nada disso. Acho que, de vez em quando, as pessoas são benevolentes na sua avaliação e seguem de forma militante durante algum tempo alguém. Mas só enquanto gostam do que lhes está a ser oferecido. É uma adesão muito impulsiva e, quando alguma coisa lhes chama a atenção noutro sítio, as pessoas mudam.
Então não há mérito próprio de um dado apresentador?
Claro que há, cada apresentador que vai à antena nessa lógica de balanço tem a sua quota de responsabilidade do sucesso que consegue. Mas as coisas contaminam-se todas um bocadinho. Uma das razões por que saí da TVI foi porque esse balanço estava tão bem organizado e orquestrado que a minha presença lá já não era fundamental.
Ou seja, estar lá a Júlia ou outro apresentador qualquer era, em termos de resultado final, mais ou menos a mesma coisa...
As coisas correriam sempre bem à TVI. Na altura em que tomei a decisão de vir houve muita gente que me dizia: "Mas como é possível ires embora, fazes parte integrante desta casa." Eu respondia: "Pois faço, mas já não faço falta, as coisas estão feitas, a organização e a estrutura de programação estão montadas." Repare, faço este ano 50 anos. O que é desafiante para mim é vir para uma empresa onde há muita coisa para fazer. Aqui, posso contribuir para uma empresa que, nos últimos anos, perdeu alguma competitividade e que, embora estando muito bem posicionada junto de alguns setores, perdeu o contacto com outros. Aqui encontrei um grupo de gente batalhadora e guerreira que acredita que é possível reposicionar a SIC no seu lugar. Eu venho contentíssima porque sei que estamos a perder. Quem está em cima só tem uma coisa a fazer: defender a sua liderança. Na TVI já estava tudo feito.
Foi isso que, uma década antes, a tinha já feito sair da SIC?
Não, as minhas motivações para sair da SIC há dez anos foram inteiramente diferentes. Saí desta casa porque nunca tinha feito prime time de uma forma sistemática. Sentia que os meus colegas eram, à época, as maiores vedetas da televisão. Gente de um gabarito como o Herman José, o Carlos Cruz, a Catarina, a Bárbara, enfim, figuras com um perfil adequado para um certo tipo de formatos.
E a Júlia? Sentia-se tapada?
Estava confinada ao day time. Nessa altura tinha 39 anos. Tinha uma grande necessidade de prime time. Só tinha feito late night. E acabaram, nessa altura, com um programa em que tinha uma fé quase religiosa chamado Noites Marcianas. Levei anos à espera daquele formato e quando finalmente foi feito cá - era um programa milionário quando comparado com o dinheiro com que hoje trabalhamos - escolheram o Carlos Cruz, que era uma escolha, devo confessar, que fazia todo o sentido. Eu ainda era pequenina. Enfim, fiquei ali a babar (risos). Depois, o Carlos pediu para ser substituído e eu fiquei felicíssima quando o Rangel, na segunda linha, me convidou.
Recorda-se bem desses tempos?
Ah, completamente. Fiquei felicíssima. Foram tempos gloriosos. Queria ter ficado a fazer aquele programa o resto da minha vida. E mobilizei-me para isso, em termos profissionais e domésticos. Depois, apareceu em Queluz de Baixo um programa chamado Big Brother que desencadeou a revolução que todos sabemos. E portanto, quando me dizem, já o Manuel Fonseca, porque o Rangel já tinha saído, que as Noites Marcianas tinham acabado, fiquei tristíssima. E o Manel disse-me: "Vais ali para o Manolo Bello fazer o programa da tarde", o Às Duas Por Três. Não tinha mal nenhum, mas não era nada daquilo que me apetecia fazer. Não dava jeito nenhum (risos).
"na RTP senti-me ferida na minha dignidade."
E veio a RTP...
Pois, a história repete-se. Por essa altura falava-se outra vez de serviço público. O Rangel tinha feito declarações sobre o que ele achava que devia ser o serviço público de televisão. E se havia pessoa que poderia ter uma visão moderna e ágil, era ele. E, então, eu recebo um telefonema do presidente da RTP à época chamado João Carlos Silva que me convida e me faz uma proposta muito estimulante. E eu lá fui.
Em Janeiro de 2002...
Sim, saí daqui de coração partido. Chorei que me fartei. Foram tempos muito difíceis.
E de muitas lágrimas por aqui. O Rangel sai em Setembro e nos meses seguintes saíram a Alberta Marques Fernandes, o José Alberto Carvalho, o Jorge Gabriel, a Júlia...
(risos) Foi uma tristeza. Um vale de lágrimas... E então lá fui para a RTP, convencida de que ficava na RTP para todo o sempre.
Mas só lá esteve quatro ou cinco meses...
(gargalhada) Quatro meses. Mas vim embora porque tive um conflito sério em relação à minha ética e honra profissional. Fui usada, tal como o Rangel, como uma espécie de bandeira política. Um bode expiatório que serviu para explicar tudo e mais alguma coisa sobretudo a argumentação de uma força política que tinha de justificar outras ações.
Está a falar de Nuno Morais Sarmento...
Exatamente, Morais Sarmento e companhia.
Governo PSD-CDS de Durão Barroso.
Sim. Nunca tinha passado por tal coisa na vida, em que a minha honra e dignidade profissional foram colocadas em causa.
Foi, aliás, nessa altura que a célebre expressão "ordenados milionários" ganhou força. O que se contestava eram, precisamente, os ordenados das estrelas da RTP.
(pausa) Esse tipo de argumentação acho um disparate. Nem me apetece ir por aí. Essencialmente, o que me magoou muito foi o facto de eu ter trabalhado muito, e de forma empenhada, na RTP e ter sido atacada na minha honra profissional. Naqueles quatro meses na RTP fiz quatro programas. Sei que trabalhei furiosamente como uma louca, gravava três a quatro programas por dia. Foram tempos muito difíceis. Fiquei muito magoada quando se falava de ordenados milionários e não se falava de esforço, de empenho e dessas coisas todas.
"Fui a primeira escolha de Moniz para o 'Big Brother'. Mas não aceitei."
E como surgiu o convite para a TVI?
Há muito que o José Eduardo Moniz me andava a namorar. Não foi nessa altura. Já uns anos antes isso tinha acontecido. Aliás, a primeira pessoa que foi convidada para fazer o Big Brother fui eu. E não fui, embora tivesse ficado muito tentada a fazê-lo, porque o Emídio Rangel me agarrou.
Está a dizer-me que foi a primeira escolha para fazer o Big Brother? Antes de Teresa Guilherme?
Sim, estou.
Não me lembro de alguma vez ter contado isso?
(pausa) Nunca contei isto publicamente (gargalhada).
Tem a noção de que, quatro meses depois da troca de galhardetes entre si e a Teresa Guilherme, a propósito da segunda edição de Casa dos Segredos, isso que me está a contar pela primeira vez é... uma bomba.
(gargalhada)... Sim, tem graça. Mas eu não troquei galhardetes nenhuns (risos). A verdade é que fui a primeira pessoa que o José Eduardo Moniz convidou. É a verdade. Tinha grande curiosidade em trabalhar com o José Eduardo, mas decidi não ir porque o Rangel, homem de grande sensibilidade e um grande gestor de equipas, disse-me que não era bom para mim.
Sabe que isso que acaba de dizer vai picar imenso Teresa Guilherme...
Porquê? É a verdade e ela sabe disso. Se fosse mentira, era outra coisa.
Arrepende-se de alguma coisa naquele bate-boca com Teresa Guilherme?
Eu não tive qualquer bate boca com a Teresa. A única coisa que disse foi: "Não me parece que a Teresa esteja bem." E fiz uma interrogação: "Será que é a menopausa?"
Arrepende-se de ter dito isso?
Não, não. Espero que a Teresa se tenha arrependido do que disse a meu respeito. Eu jamais na minha vida profissional disse mal de qualquer colega meu. Jamais fiz uma crítica pública sobre o desempenho de um colega. Tem que ver com códigos de ética e profissionais. Jamais. Portanto, sobre a Teresa não tenho mais nada a dizer.
Tinha uma boa relação com ela?
Profissional, normal. Não existia nenhuma amizade. E, pronto, concedo, dificilmente existirá alguma a partir de agora (gargalhada). Mas fiquei surpreendida, confesso. A Teresa tem um percurso profissional que fala por si. Ela não precisa de arrancar um projecto profissional a dizer mal de outra pessoa. Achei muito deselegante.
Moniz e Rangel são os melhores? Não há ninguém que se aproxime?
Luís Marques. Adoro trabalhar com ele.
Ele tem a mesma intuição e faro que Rangel e Moniz?
Estou a falar de liderança, de capacidade de gestão de equipas.
Mas Rangel e Moniz têm isso, mas não são só isso...
O melhor gestor e a melhor cabeça para televisão chama-se José Eduardo Moniz. O Zé Eduardo tem uma grande, grande experiência de televisão. São 30 anos, não são dez nem 15. Depois, o Luís Marques. O Luís é um homem que junta a sua experiência na RTP, que lhe foi muito útil, com a sua experiência aqui. Ele fez um trabalho notável na RTP. Aliás, tem graça, porque foi ele quem me despediu da RTP e me contratou para aqui (risos).
Como se explica que dois homens com o talento de Rangel e Moniz estejam afastados da televisão?
(pausa) São as circunstâncias do mercado. E também o reflexo daquilo que a saída de um e de outro desencadeou. O Zé Eduardo sai em conflito com a Prisa e integra hoje uma empresa que não sabemos ainda onde nos levará. O Emídio teve um caminho mais complicado. Fazem falta os dois. Muita falta.
Que relação tem ainda com Rangel?
Continuamos a ter uma relação muito carinhosa, mas não sei em pormenor o que é a atividade dele. "Sou amiga de moniz. É uma relação de pinças."
Com Moniz mantém uma relação mais próxima?
Sim, sim. Sou amiga do Zé Eduardo. Falamo-nos, telefonamo-nos, jantamos, almoçamos. Mas é uma relação de pinças. Porque, embora as nossas empresas não sejam concorrentes, há sempre o limite do bom-tom.
Até porque a relação entre a Ongoing e a Impresa não é propriamente saudável...
Naturalmente, até por isso. Mas ele é um diplomata e eu não sou exatamente desprovida de bom senso... (gargalhada)
E ele não desistiu de a contratar.
E à segunda não resisti. E já agora faço outra revelação que também tem graça. A primeira ideia do Zé Eduardo quando me contrata é que fosse eu a fazer o programa da manhã. Mas como demorei um bocadinho a responder e ele tinha uma grande necessidade de fechar a grelha, contratou o Manuel Luís Goucha (gargalhada). Quando eu chego a Queluz de Baixo, o Manel já estava a fazer um programa de má memória chamado Olá Portugal. E é assim que começam estas trocas e baldrocas maravilhosas.
Mudemos de assunto. Fala-se muito do prime time, até porque é o horário que atrai mais investimento publicitário, mas é com a grande queda no day time, nos últimos anos, que a SIC perdeu a liderança...
É verdade. Não só mas também. Porque o day time da SIC conheceu nos últimos anos muitas mexidas, muitas alterações, muita rotatividade nas duplas de apresentadores. E isso não é bom. O que os espectadores de day time querem é estabilidade, conforto, companhia, confiança. Ora, uma estação que está sempre a mudar os projetos, os conceitos e os apresentadores não fideliza ninguém. Uma das grandes razões do sucesso do Você na TV!, na TVI, tem que ver com continuidade, com estabilidade. Aquele programa está na fase de maturidade.
"FICO FELIZ COM O SUCESSO DO GOUCHA E DA CRISTINA. TEMOS UMA RELAÇÃO INCRÍVEL."
Como é estar agora do outro lado da barricada?
(pausa) O Manuel e a Cristina são meus concorrentes, mas não posso negar-lhe que fico tão feliz com o sucesso deles... Aquele projeto cresceu comigo. Li a entrevista que a Cristina e o Manuel lhe deram no Natal e fiquei encantada. Uma ternura, uma ternura. Eu tenho uma grande ternura por eles. Eu, a Cristina e o Manel temos uma relação incrível (pausa)... até me comovo...(para). As pessoas acham sempre que nós somos muito concorrentes, que andamos sempre mal-dispostos uns com os outros. Tenho com o Manel uma relação de conforto, de estima, de grande apreço. Como sabe, apresentei vários programas com ele. O conforto que é ter aquele homem ao meu lado! Eu sou uma desorganizada, uma pantomineira. Ele é um cérebro de organização. O nosso casamento era felicíssimo. E ver a Cristina, que foi minha aluna na Universidade Independente, a crescer, é de uma enorme felicidade. Ela foi a primeira que vi naquela turma. E não há nada mais bonito do que passar o testemunho. É quase como ver um filho crescer.
Sente falta de dar aulas?
Sinto. Aliás, estou a pensar voltar. Gosto muito de falar com os meus alunos. De sentir a paixão sagrada. Costumo dizer que os tipos que gostam de comunicar, de esgatanhar, de avançar, são pessoas que têm a chama sagrada. Eu olhei para a Cristina e vi logo que estava ali o bicho. Ela tinha lá tudo. E depois ver aquilo que era intuição e impulsividade, com o tempo, a amadurecer é muito gratificante. E sentir a inteligência de deixar-se trabalhar. Ela tem isso, é uma mulher muito madura, é um prodígio de bom senso, aquela menina. Um grande caráter. Muito boa menina, muito boa menina, muito boa menina. Acho que a Cristina vai ser a maior estrela da televisão portuguesa. O Manel é um homem de muita, muita experiência. De uma inteligência muito rápida. Um grande sentido de humor, que é a maior prova de inteligência. Um grande talento, muito trabalhador. E depois ele tem a intuição toda refinada, já passada pelo tempo. É um senhor. É crescido.
Gostava de os ter aqui na SIC?
Gostava. Gostava, claro. Embora eu tenha aqui grandes profissionais. Aliás, a SIC tem o maior viveiro de estrelas do mercado. A SIC teve esse mérito sempre, ao contrário da TVI. E tanto que me revoltei contra isso durante o tempo que lá estive. Nós lá nunca criámos tantas estrelas.
E nessas estrelas da SIC encontra a chama sagrada?
Em algumas, sim. Tenho o Manzarra, tenho a Vanessa, que vai crescer. Tenho o Daniel Oliveira. E tenho a linha toda dos humoristas, que a TVI nunca conseguiu ter. Sou uma mulher afortunada. Mas esta conversa tem que ver com os elogios ao Manel e à Cristina. Aquela dupla está em fase de maturação plena. Aquela equipa é fantástica. Tanto trabalhámos juntos, meu Deus. Foram dias, meses, anos, a afinar aquele conceito. Eles perderam muito para ganhar agora. Portanto, não creio ser imodesta, mas o meu percurso será semelhante. Eu sei que vou ganhar. É uma questão de tempo.
E a Praça da Alegria?
Lá está (gargalhada). Lá está a fazer o seu caminho. É um programa muito bem feito, para um público um bocadinho mais velho. Mas é um programa muito bem formatado, há anos. Está calibradíssimo para o público da RTP. Mas está a perder público. E vai perder mais. E veremos quem é que vai conseguir agarrar esse público. Sou muito persistente. Tenho uma enorme paciência. E estou-me perfeitamente nas tintas para ler aqueles títulos "Júlia Pinheiro perdeu". Nas tintas. Sou absolutamente coriácea.
É uma mulher bem resolvida?
(pausa) Acho que sim. Mas sou uma mulher bem resolvida porque tenho a perfeita convicção do meu esforço e da minha entrega. Sou uma mulher de enorme seriedade. Venho todos os dias trabalhar muito contente e feliz e sempre que vou para a antena.
"Gosto de apresentar, mas não sou viciada."
A Júlia acumula o programa com a direção de Formatação de Conteúdos. O trabalho de gabinete dá-lhe prazer?
Muito prazer. Infelizmente, não tenho tanto tempo para pensar como gostaria. Mas tenho de ir à antena todos os dias. É o meu ginásio.
Tem vício de apresentar?
Não é vício. Vou à antena porque todos os dias tenho de me testar, todos os dias tenho de manter os meus sentidos alerta, porque tenho de fortalecer a minha capacidade de comunicação. Enquanto puder, não quero sair do ecrã. Não tenho vício de ecrã, mas gosto muito do que faço. Mas quando acabo o meu programa, tenho de pensar em mais coisas e, sobretudo, tenho os pés assentes na terra. Sei que este trabalho de apresentadora há um dia que acaba. Sou mulher, as mulheres querem-se jovens e bonitas. São muito poucas as que ficam em antena anos a fio.
Sente essa síndrome de futebolista?
Sinto, sinto. E acho que todos nós sentimos. Como sou uma rapariga precavida, tenho passado nos últimos anos, lentamente, para a retaguarda dos programas, para o trabalho de gabinete.
E porque é que, sendo assim, não quer ser diretora de programas, como aparentemente já teve hipótese, quer na TVI, depois da saída de Moniz, e aqui na SIC, depois da saída de Nuno Santos?
(pausa) Porque ser apresentadora de programas implica uma tarefa absolutamente a tempo inteiro, sem nenhuma concessão horária, a não ser as tarefas da direção de programas. Ora, enquanto estiver na antena, não posso ser diretora de programas.
É diretora de Formatação de Conteúdos...
Não é a mesma coisa. A direção de conteúdos tem que ver com a escolha, com a formatação, com o desenvolvimento de projetos, tem que ver com a relação com uma das áreas da empresa, mas funciono com um director-geral. Eu funciono com o Luís Marques. Sempre que posso estar em défice, tenho um diretor que respalda, me ajuda, e que tem tido a imensa gentileza de, quando falho, estar disponível para me ajudar. Eu sou muito séria nos meus compromissos: não poderia ser diretora de programas mantendo um programa no ar. De forma alguma.
Admite vir a ser diretora de programas aos 60 anos, já que acha que não estará no ar nessa altura?
Quem sabe, quem sabe...
Sente-se preparada para o cargo?
Acho que sim, mas não é uma aspiração minha. O exercício do poder absoluto numa estação não é aquilo que me fascina. Eu gosto mesmo é de me sentar aqui consigo e o Nuno diz: "Vamos fazer um programa sobre óculos" (e pega nos óculos vermelhos). E eu dou dois murros em cima da mesa e digo: "Óculos, mas quem é que precisa de óculos?" E você diz: "Óculos, sim senhor, porque as pessoas têm olhos!" E estamos aqui cinco horas à volta da mesa a discutir uma ideia. É disto que eu gosto. É o desenvolvimento da ideia, é concetualização, é formatação, é a concretização. Isso é que me dá a alegria da minha vida. A coisa de ir discutir com os acionistas os orçamentos, as contas... isso não, valha-nos Deus.
Mas não era dessa alegria que estava à espera quando era pequena. Quando era miúda e lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, o que respondia?
Eu? Eu queria ser arqueóloga (gargalhada).
Ah, é muito parecido com o frisson que tem agora...
(gargalhada) Não diga isso. A arqueologia não é nada chata. Aconteceram-me coisas fantásticas (risos)... Ainda andei ali armada em arqueóloga amadora durante uns anos e diverti-me imenso. Não morro sem ser arqueóloga. Quando for para a reforma, com andarilho, hei de falar sobre as pedras que me entusiasmam.
Chegou a pensar em estudos nessa área?
Eu queria fazer um curso de História. Era o que eu pensava. Brincava com as pedras. Também brinquei com as bonecas, mas isso nunca me entusiasmou muito. Fui sempre uma leitura compulsiva. Acho que foram as leituras que me levaram um bocadinho para a arqueologia. Eu era um bocadinho como o Indiana Jones, antes de ter aparecido o Indiana Jones. Portanto, a coisa esteve muito séria, porque andei mesmo convencida de que ia para História. Mas depois lá percebi que, se calhar, se fosse para a faculdade para História, provavelmente agora estava no desemprego ou a servir bicas numa cafetaria. Acabei por entrar para Línguas e Literaturas Modernas e percebi que era o curso certo para mim, em relação a referências culturais, raciocínio geral, leituras...
E como surge a rádio na sua vida?
Eu estava na faculdade, mas não me apetecia ser professora. E houve um dia em que vinha a descer uma rua em Lisboa e era o dia da primeira visita do Papa João Paulo II a Portugal. Lá vinha o papamobile a descer a Baixa...
... e sentiu o chamamento.
(risos) Mais ou menos isso (gargalhada). Vinham dois camiões de caixa aberta atrás pejados de jornalistas. E atrás mesmo do Papa vinha o José Augusto Marques, a fazer a reportagem em direto para a antiga Emissora Nacional. Eu fiquei naquele momento fascinada por aquilo e disse para mim: "É isto! Não vou nada ser professora, ou tradutora, vou é ser jornalista." Mas primeiro que chegasse lá, foi difícil.
Foi à rádio e disse "olhe, tenho uma boa voz!"
(gargalhada) Tenho uma voz pujante. Não, não, eu não conhecia ninguém. Mas lá consegui. Havia umas sessões abertas com o mestre José Atalaya, imagine-se, e um belo dia lá fui ver uma sessão no São Luiz, ele lá topou que eu estava interessada, e convidou um grupo de pessoas para o ajudar. Eu aproveitei o ensejo e nunca mais larguei o osso. E um belo dia aparece um casting nacional para televisão e eu concorri. Até que me responderam e me vi à frente do Júlio Isidro. Ele descobriu toda a gente e a mim também. Olhou para mim e disse-me: "Hummm, chamas-te Júlia, tens o nariz grande... tens futuro" (gargalhada). E fui contratada para fazer um programa abominável chamado Estamos Nessa. Fiquei lá algum tempo e isso permitiu-me conhecer algumas pessoas, que sentiram em relação a mim o mesmo que eu senti em relação à Cristina, a chama sagrada. Há um senhor chamado Jaime Fernandes que um dia veio ter comigo e me perguntou se eu queria candidatar--me a um lugar na Rádio Renascença. E eu lá fui. E quem é que era o diretor? O Henrique Mendes (gargalhada).
A sua vida está cheia de encontros e desencontros...
(gargalhada) Pois, é fantástico. Chego lá, o Henrique ouviu a minha voz e deve ter ido para casa rir. E deve ter contado à Glória de Matos: "Olha, tenho lá uma maluca que acha que tem voz de rádio, mas tem uma voz de apito" (gargalhada). Mas a verdade é que eles gostaram. Eu ia ser jornalista, não ia ser locutora. Mas nessa altura a Renascença não tinha jornalistas à noite porque, como todos sabemos, de noite sucedem-se coisas que não acontecem de dia (e sussurra)... O pecado esconde-se à noite. E, portanto, não me aceitaram e disseram: "A senhora fica se quiser ser locutora de rádio, se quiser fazer uma carreirinha ao lado do senhor António Sala, da dona Olga Cardoso." E eu pensei que, já que estava ali, devia aproveitar. Foram tempos gloriosos. Diverti-me que nem uma doida. Fiquei para todo o sempre muito amiga do Henrique. Tenho muitas saudades dele (pausa). Ele tinha uma forma muito querida de olhar para as coisas. Todos os dias lhe perguntava: "Então, Henrique, ouviu-me ontem à noite?" E ele respondia--me sistematicamente: "Não, minha querida, não tive tempo." Coitado, como eu o percebo (gargalhada).
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