A última ceia foi ao almoço. Na última edição de 2013 juntámos os três diretores-gerais das televisões portuguesas: Luís Marinho (RTP), Luís Marques (administrador editorial do grupo Impresa/SIC) e Luís Cunha Velho (TVI). Sem gravata, levámo-los à tasca. Com direito a bom vinho, excelentes petiscos e a uma conversa animada. Onde não faltaram provocações, desejos e umas quantas confissões.
É uma tasca, mas a primeira coisa em que reparamos assim que chegamos são nos bons copos de vinho que estão na mesa. São 15.00, a sala está vazia. O Secadegas, ali no novo Intendente, em Lisboa, já fechou a sua rotina de almoços. Agora estamos por nossa conta. E na do chefe Tiago, que, na cozinha, prepara petiscos vários para os diretores.
A atmosfera é familiar. Móveis antigos, cómodas da "casa da avó", cadeiras de várias nações, discos, rendas, rádios clássicos, pratos e outras loiças e até os lustres pesados a que ao tempo só se retirou o pó. A sala é comprida. Do lado esquerdo está o balcão. De pedra, como nas tascas, que aqui as únicas modernices que entram são as matérias-primas, que fazem da casa, aberta há três meses, um dos novos locais de paragem obrigatória na outrora mal-afamada zona da capital. Na parede do lado direito, uma enorme ardósia desfila a ementa de petiscos recomendados.
Luís Marinho foi o primeiro a chegar. Antes da hora. Antes mesmo de nós. Cumpre o prometido: vem sem gravata. De fato e camisa escura, mas sem gravata. "Cheguei um bocadinho mais cedo. Vieram trazer-me, que isto aqui para estacionar não é fácil e fui entrando", diz-nos, à laia de cumprimento. Está sentado à mesa, mas resiste ao pão, aos convidativos pratos de queijo, às azeitonas, ao requeijão e ainda a uns, havemos de confirmar mais tarde, saborosíssimos enchidos do tamanho de tâmaras.
Não passam cinco minutos e Luís Cunha Velho abre a porta. Vem mais formal. Fato completo, camisa branca e gravata impecável. "Gravata?", perguntamos-lhe num tom de censura divertida. O diretor-geral da TVI tinha-se esquecido da recomendação. "Não seja por isso, tira-se já a gravata", brinca. E tirou.
Luís Marques cumpre a preceito o dress-code. Calça clara, camisa e blazer, "como se fosse fim de semana". Não é. É quinta-feira e àquela hora o televisor, antigo, pequeno e de caixa, colocado logo à entrada, está desligado. Se estivesse ligado, e na RTP1, estaria a dar o Natal dos Hospitais, que desde essa manhã vai alternando em antena entre Alcoitão e o Porto.
Escolhido o vinho, tarefa que Marinho e Cunha Velho deixam a Marques, ele próprio um pequeno produtor nos tempos livres, é tempo de abrir as hostilidades. Que comece o festim: à mesa, juntando-se ao que já lá estavam, novos petiscos - ovos com farinheira, pimentos padrón (unos pican y outros non...), fígados de aves com vinho do Porto. Antes, o brinde. À nossa, a 2014. Depois, entre garfadas, a conversa. E é precisamente pelo Natal dos Hospitais que começa...
António Luís Marinho (ALM) - É um clássico. E é sempre uma grande operação da RTP, quer em Lisboa quer no Porto.
Luís Marques (LM) - E resulta sempre. É impressionante. O que só mostra que os hábitos do público não mudaram assim tanto. E o resto é conversa.
Luís Cunha Velho (LCV) - E se mudam, demoram gerações. E a mudança é muito lenta. Por isso é que há receitas que continuam a funcionar em televisão.
O modelo de day time na televisão portuguesa, com talk show, jornal, novela, talk show, é inesgotável?
LM - Não sei se é inesgotável, mas este modelo existe desde sempre. Desde que há privadas, pelo menos. A Praça da Alegria existe há quantos anos? 20?
ALM - Até mais [segue-se um regresso ao passado sobre as origens da Praça, entre datas suspeitadas mas não confirmadas, a que poupamos os leitores. A versão oficial, verificada posteriormente, é que a Praça da Alegria começou em 1995 com Manuel Luís Goucha e Anabela Mota Ribeiro. Antes, em 1991, já com Goucha e Júlio Magalhães, o programa das manhãs da RTP chamava-se Bom Dia. Em 1994, ainda houve Viva a Manhã, também conduzido pelo apresentador].
LM - É engraçado falar-se disto porque a Praça da Alegria foi o primeiro problema que tive de resolver quando cheguei à RTP. Nós entrámos em funções no dia 22 de julho de 2002 [Luís Marques foi administrador com o pelouro de conteúdos da RTP na gestão de Almerindo Marques]. No dia a seguir, ainda eu não tinha direção de Programas nem direção de Informação e o Goucha pede para falar comigo.
Para dizer que se ia embora para a TVI...
LM - Precisamente. De repente, pensei: "Isto começa bem." [risos] Pior era impossível. Tinha acabado de me sentar à secretária. A Sónia [Araújo] teve de resolver o problema durante uns tempos.
E o Jorge Gabriel?
LM - Pois, é aí que telefono ao Jorge Gabriel. Estava de férias em Phuket [ilha da Tailândia]. E disse-lhe: "Tens de voltar rapidamente para Portugal porque vais para o Porto apresentar a Praça da Alegria." Ele vivia em Lisboa, tinha a família em Lisboa. E a verdade é que ele disse logo que sim. E foi para o Porto.
E agora na SIC, Luís, volta a ter um problema bicudo para resolver. Como é que vai descalçar a bota?
LM - Não temos bota para descalçar [risos].
Não? Está a correr bem?
LM - Está.
A manhã, com Júlia Pinheiro, e a tarde, com Conceição Lino, estão a correr bem?
LM - Estão, dentro das contingências. O mercado já não é o que era.
Bem, mas eu diria que bem está a correr o day time da TVI, Luís Cunha Velho?
LCV - Muito bem. Somos líderes de audiência, temos os melhores apresentadores...
E o da RTP?
ALM [pausa] - Acho que a manhã e o início da tarde estão equilibrados. A partir das seis da tarde, as coisas estão agora a correr muito bem.
As audiências e a GfK
Portanto, a RTP já passou a acreditar na GfK, depois de tantos protestos há um ano e meio, é isso?
ALM - Não.
Não? É o que parece. Nunca mais se ouviu a RTP queixar-se publicamente da GfK. Bastou o Luís Marques sair da CAEM [Comissão de Análise e Estudo de Meios, que superintende o apuramento das audiências televisivas em Portugal]?
[gargalhada geral]
ALM - Estamos à espera que termine este processo de verificação que está a ser feita até ao final do ano.
Mas está a resultar? Como é que justifica esta subida da RTP nos últimos meses?
ALM - Tem que ver com as retificações que se fizeram na grelha de programas, claro. Alguma coisa terá mudado no painel, acreditamos nisso, mas ainda assim continua a notar-se uma diferença considerável entre os resultados da GfK e os da Marktest.
Aquele período entre março e junho de 2012 foi complicado...
ALM - Sim, mas isto não tem nada que ver com o Luís Marques [risos].
LM - Ai não? [risos]. Não me falem desse período. Foi de enorme violência. Ainda por cima fui lá parar [Luís Marques foi presidente da CAEM até maio deste ano] por mero acaso, por uma tragédia, que foi a doença e depois a morte do Dr. Bastos e Silva. Estava eu em Nova Iorque a receber o Emmy [a novela Laços de Sangue foi premiada em 2011], quando o Dr. Balsemão me telefonou a dizer que o Dr. Bastos e Silva tinha de ser substituído e que não tinha mais ninguém a não ser eu.
Mas agora as almas estão mais calmas.
LM - Sim, vamos esperar o que dá a verificação de dados. Uma das razões que levaram os operadores, principalmente os privados, a lutar por um novo painel é que na altura Portugal, pelos dados da Marktest, era o único país da Europa onde o consumo de televisão estava a baixar. E é bom não esquecermos isso. Em todos os países da Europa o consumo subia. E por que carga de água é que cá baixava? Sendo que a queda do consumo tinha um impacto muito significativo no negócio dos operadores. Ao baixar o consumo, o negócio dos operadores estava a dar menos ratings ao mercado e a capacidade de captação de receitas diminuía. E sobretudo para a TVI esse problema era muito grave, porque nessa altura a TVI tinha uma liderança muito mais folgada do que tem hoje.
Este painel resolveu esse problema. Pelo menos, há mais gente a ver televisão.
LM - Temos mais 200 mil pessoas a ver televisão. Onde estavam essas pessoas? Estavam escondidas? O painel da Marktest estava degradado, não refletia efetivamente a realidade sociodemográfica do país. A verdade é que termos mais 200 mil pessoas a ver TV é muito importante para o negócio dos operadores.
O mercado não estava preparado para a nova medição?
LM - Não, não estava. Isso agora parece-me óbvio. O painel da Marktest não era mexido há 20 anos. Mais, a Marktest não montou um painel, herdou o painel que vinha do passado, do tempo da Ecotel e da AGB. Foi sendo renovado e melhorado, é verdade, mas nunca se tinha montado um painel de raiz.
ALM - Sim, nisto eu concordo com o Luís. Nenhum de nós estava preparado para isto. Para estes resultados tão diferentes...
ACV - Mas muito diferentes mesmo. Ou seja, no dia 28 de fevereiro de 2012 todos os canais tinham audiência x, no dia 1 de março de 2012 os dados eram completamente diferentes.
LM - Mas se calhar o painel anterior estava a esconder uma realidade diferente.
ALM - Foi um choque grande. Nós na RTP tínhamos noção de que estávamos a descer. Essa tendência era real, já vinha de trás. Mas não da forma tão abrupta como se passou. O trabalho mais importante que teve de se fazer na RTP foi interno, foi não justificar tudo com o painel. Porque depois a tendência de cada falhanço, de cada mau resultado, era sempre o de justificar isso com o novo painel.
Meus senhores, vamos aproveitar a chegada à mesa deste picadinho de lombo e destas gambas para deixar os assuntos mais técnicos...
LM - Mas estes petiscos não param? Eu começo a estar cheio.
ALM - Eu também estou quase arrumado.
Eu e o Cunha Velho ainda temos aqui algum espaço...
[gargalhada]
Os refúgios de fim de semana
Antes de começar a gravar, falámos da série Bem-Vindos a Beirais, que está a ter bons resultados na RTP1. Todos vocês têm um Beirais nas vossas vidas?
LM - [risos] Eu tenho, lá em Leiria, onde produzo o meu vinho no pouco tempo livre que me resta. Mas dá-me muito prazer.
ALM - Tenho a dos meus pais, lá em cima.
LCV - Eu tenho terra: Lisboa [risos].
Portanto, tal como eu, também não sabe o que é isso de "ir à terra" e trazer azeite, ovos caseiros e couves. Eu sofri muito em criança com este trauma. Todos os meus amigos tinham terra...
[risos]ALM - Mas Beirais não remete só para a aldeia. Há também ali uma ideia de estilo de vida, de entreajuda, de pacatez, de serenidade.
Deseja isso?
ALM - Enfim, desejar, desejar é um exagero, mas não tenho dúvidas de que haverá um momento em que vou querer mais tranquilidade.
LM - Tu já tens. Não há sítio mais tranquilo do que a RTP [gargalhada].
ALM - Olha, primeira provocação.
ACV [risos] - Pronto, 1-0 para a SIC.
E o Luís, sempre que pode, foge para Leiria, para a sua lavoura?
LM - Fujo. Já é de família. Aquilo já era dos meus avós.
Mas é o seu canto? Sente que pertence ali?
LM - Sinto, sinto. Cada vez mais, aliás. É óbvio que se estiver lá mais de oito dias, começo a sentir saudades de Lisboa, mas quando lá estou, que normalmente é ao fim de semana, não tenho saudades.
ALM - Ou quando vais para as vindimas...
LM - Sim, quando vou para as vindimas.
E o Luís, sempre foi citadino?
LCV - Não, gosto muito do Interior, do Alentejo. Tenho uma casita no Alentejo.
Uma casita é bom: dá assim um ar espartano nestes tempos de austeridade.
[risos] LCV - É mesmo uma casita.
LM - Onde é que acham que Belmonte [principal novela da TVI] está a ser gravada? [risos]
LCV - Sim, sim, é na minha casita [gargalhada]. Não, mas tenho um refúgio no Alentejo e é para lá que fujo aos fins de semana.
Vai sempre ao fim de semana? Sente essa necessidade?
LCV - Sim, vou sempre que posso ao fim de semana. Sinto muito essa necessidade. Aliás, quem está neste meio, acho que sente necessidade de ir mudando o chip, apesar de nunca estarmos completamente chipados. O telemóvel toca, as audiências chegam todos os dias...
É impossível fecharmo-nos num casulo.
Vocês nunca despem a camisola? Nunca tiram o pin, pois não?
ALM [Luís Marinho leva o pin da RTP colocado na lapela esquerda do fato] - Não, é impossível. É claro que em férias consigo mais, mas nunca estou 100% desligado. Nenhum de nós consegue estar.
LM - Claro que não. Ler jornais é outra coisa. Quando estou de férias, há dias em que não leio jornais, mas desligado desligado é outra coisa.
LCV - São funções de grande responsabilidade, de grande exigência, de permanente tensão.
LM - Mesmo as férias são uma coisa difícil...
Chateiam-no muito mesmo em férias? Os jornalismos chateiam-no, isso eu sei...
[risos] LM - Bem, posso dizer que desde que estou na SIC em funções mais executivas, desde 2009, posso dizer que praticamente não tenho tido férias.
Mas antes, na RTP, tinha. Aliás, acabou de dizer ao Luís Marinho que na RTP trabalha-se pouco, é tudo tranquilo...
LM - ... [risos]
ALM - Ah, mas no tempo dele trabalhava-se muito [gargalhada]. É isso que ele vai dizer.
LM - No meu tempo trabalhava-se muito na RTP.
ALM - Depois ele saiu e melhorou. Passámos a trabalhar menos [risos].
Bem, estou a ver que quando o Luís Marques sai de algum lado as coisas melhoram sempre. Saiu da RTP e tudo melhorou, saiu da CAEM e tudo melhorou...
[gargalhada geral]
ALM - Pronto, concedo, as nossas audiências pioraram um bocadinho...
LM - Um bocadinho, um bocadinho. Mas é verdade, desde 2009 as férias são difíceis. Olhem: 2009, estou de férias, o José Eduardo Moniz sai da TVI. Passei 15 dias ao telefone: era com os jornalistas, era com o Dr. Balsemão, era com outras pessoas.
ALM - Sim, eu também nunca desligo completamente. Não faço férias no estrangeiro, é sempre cá em Portugal e, portanto, há uma proximidade que é difícil de afastar.
Vai à terra com frequência?
ALM - Não, com frequência não, que é lá em cima. Mas tenho um casa aqui perto de Lisboa e tento ir quase todos os fins de semana.
Reparem que ele não disse uma casinha...
LM - Pois, estou a ver, estou a ver. O Luís Cunha Velho disse uma casinha, o Luís Marinho tem uma vivenda na praia. Eu sou o único, coitado, que tem uma casa dos pais [risos]...
ALM - Eu, como conheço a casa, nem vou dizer nada [gargalhada]...
ACV - Afinal é um solar [risos]...
A televisão dos diretores
Bem, enquanto se abre uma nova garrafa de vinho, deixem-me lá perceber que televisão é que veem. Luís, o que é vê na SIC e na TVI?
ALM - O que é que eu vejo na SIC e na TVI? Além da informação, tento ver todos os programas novos. Tento ver sempre um bocadinho.
O que é que tem visto de novo na TVI?
ALM - De novo na TVI? Só vejo quando se estreiam. A Casa dos Segredos, enfim, vi um bocadinho no primeiro dia.
Ah, então sabe quem é a Bernardina?
ALM [cara de espanto] - A Bernardina? Não, não sei.
LM [sorriso] - Olhem, eu também não sei quem é a Bernardina.
Luís Cunha Velho, por favor, satisfaça lá a curiosidade aos cavalheiros?
[risada] LCV - A Bernardina é uma concorrente da Casa dos Segredos, que tem uma particularidade muito... [pausa] muito própria.
Olhe que isto está a gravar.
[risos] LCV - Então eu explico off the record.
Não, não. O desafio é esse mesmo. Explique lá em on quem é a Bernardina.
[Luís Marques e Luís Marinho entreolham-se, divertidos...)
LCV - É uma mulher do Norte. E acho que isso já diz tudo. Na linguagem, na forma de estar. É espontânea, tem pelo na venta.
LM - Ah, pronto, já percebi tudo.
ALM - Não tenho nada contra as mulheres do Norte. Sou casado com uma [é casado com a jornalista Paula Magalhães, da TVI, de Braga].
LCV - Não, mulher do Norte no sentido de dar peso a algumas frases que nós, aqui em Lisboa, não damos. Respeito muito as pessoas do Norte, que não restem dúvidas.
Além de espreitar a Casa dos Segredos e outras estreias na TVI, há mais alguma coisa que o diretor-geral da RTP veja na concorrência?
ALM - Sim. Olhem, o Factor X, por exemplo. A primeira fase espreitei bastante.
Não me diga que também gostava, como o seu presidente [Alberto da Ponte], de ir atuar perante os jurados?
[gargalhada]
ALM - Não, isso não. Não tenho veia artística nenhuma. Não canto nada bem.
E Alberto da Ponte canta? Costuma andar por lá a cantar nos corredores da RTP?
ALM [sorriso] - Quem, o presidente? Sim, tem boa voz. Mas não costuma entrar-nos pelos gabinetes a cantar, isso não.
LM - Mas dá-vos música...
ALM - [gargalhada e pausa] ...
LM - Dá-vos baile.
Já agora, o que é que achou de a SIC ter aproveitado aquela confissão pública de Alberto da Ponte a dizer que não perdia um Factor X ao domingo para fazer uma promoção em antena?
ALM - Achei um bocadinho deselegante, confesso. Não foi ilegítimo, achei só deselegante. Nós não teríamos feito uma coisa dessas com o Dr. Balsemão.
Quer responder, Luís Marques?
LM - O Dr. Balsemão também não canta.
Mas toca bateria...
[gargalhada]
LM - Bom, o que é posso dizer sobre isso? [pausa e sorriso] Compreendo que seja irresistível aproveitar aquele momento. Ainda por cima, foi num espaço público, durante uma conferência, portanto é irresistível. E a SIC tem essa irreverência quase incontrolável. Talvez aqui se possa ter pisado um bocadinho o risco de alguma deselegância, sim. Posso concordar que foi um bocadinho excessivo. Mas isso já foi esclarecido com o presidente da RTP.
E o Cunha Velho canta?
LCV - Não, nem no banho.
Mas vê o Factor X ou é fiel à sua Teresa [Guilherme]?
LCV - Sou fiel à Teresa, sim, mas pico o Factor X. E gosto, genericamente.
Gostava de ter aquele formato na TVI?
LCV - O Factor X foi oferecido à TVI há alguns anos pela Fremantle. Na altura, a SIC tinha o Ídolos e nós achámos que não era o momento indicado para adquirir o programa. Mas era um formato que já conhecíamos há bastante tempo. Tem um grande potencial, de facto.
Não pense que se escapa: que programa é que o diretor-geral da TVI gostava de ir buscar à RTP?
LCV - O Campeonato do Mundo de futebol...
LM - [gargalhada forte]
LCV - ... como eu estava a dizer, o Campeonato do Mundo de futebol repartido, como tinha sido nos últimos anos. A seleção de futebol é um bem nacional, que deve ser, na minha opinião, mostrado em todas as suas potencialidades e vertentes. As experiências que já tivemos no passado, nós os três que estamos aqui à mesa, cada um no seu canal, correram muito bem. Devíamos equacioná-las para este Campeonato do Mundo do Brasil.
ALM - Parece-me ótimo, mas, em nome da RTP, faço já uma contraproposta: passamos a dividir também a Liga dos Campeões [risos].
LM - Acho bem, acho bem. Desde que não toquem na Liga Europa, que ainda por cima vai ter Benfica e FC Porto este ano, por mim, está tudo bem [gargalhada].
Pois, Cunha Velho, ao contrário das audiências, aqui não está na liderança. Está perante dois sportinguistas dos sete costados, o Luís Marques e o Luís Marinho...
LCV - Ai é? Pois eu sou benfiquista convicto e só lamento que o meu clube tenha trocado a TVI pela SIC [alusão ao facto de os encarnados terem sido eliminados da Liga dos Campeões, exclusivo TVI, e passarem para a Liga Europa, cujos direitos pertencem à SIC]...
As rivalidades e o choque da realidade
O facto de todos terem um bom conhecimento do mercado, e de já terem estado até em empresas concorrentes, facilita a relação entre os canais? Aquela ideia dada pelas audiências de uma grande rivalidade não existe depois na prática?
LM - Não se trata de rivalidades. Essa não é a principal questão. Há muita coisa que nos une. Provavelmente, até, é muito mais o que nos une do que o que nos separa. Os tempos em que a SIC e a TVI eram dois inimigos que não se podiam ver, que não conseguiam sequer sentar-se à mesma mesa, acabaram. Acabaram há muito. Não é possível que os operadores hoje tenham esse tipo de comportamento. Os desafios que se nos colocam são muito grandes. Os riscos são iguais para os três operadores. E são tão grandes que, se não estivermos unidos, vamos ter grandes problemas.
ALM - A crispação deixou de ser a mesma. Concordo inteiramente com o que o Luís acabou de dizer.
LM - Foi o choque da realidade. O país em 2013 é outro. O país foi à falência e depois as pessoas perceberam que tudo tinha mudado. Nas televisões é a mesma coisa. Quem lá trabalha já percebeu isso. A paixão continua a mesma, mas as coisas mudaram. Há um sentido prático que tem de ser hoje muito mais apurado. Até pela simples razão de o posto de trabalho não estar tão garantido como esteve no passado. Mas isso é assim em todos os sectores de atividade.
ALM - Nos privados, acho que as pessoas sempre perceberam isso. No sector público, isso não acontecia. Na RTP, as coisas mudaram muito, mas ainda eventualmente, há ainda quem não tenha percebido. Há quem continue a achar que o emprego está garantido para toda a vida.
Está a falar dos sindicatos, das comissões de trabalhadores?
ALM - Sim, também. Os sindicatos fazem o seu trabalho. Posso, às vezes, não concordar, mas é um trabalho legítimo. Já a comissão de trabalhadores faz um papel que é precisamente o contrário do que a empresa precisa. E é uma imagem terrível que passam para o exterior.
LM - O problema da RTP é o poder político achar que tem uma ideia sobre a RTP e haver muita gente à volta do poder político que acha que tem esse direito de ter uma ideia sobre a RTP. Quando não percebem nada daquilo que estão a falar. E, desse ponto de vista, todos os políticos são iguais. Todos. Todos querem controlar a RTP.
Esse problema é insolúvel? Haverá sempre essa tentação?
LM - Por mais ministros que passem, haverá sempre a ideia de perceber como a RTP pode ser um instrumento de poder. Por exemplo, o atual ministro [Poiares Maduro]. Vem de fora, é um intelectual. Chegou e está a mudar tudo. Quer pôr mais canais, quer TDT, quer tudo. Mas baseado em quê? Com que conhecimento?
[António Luís Marinho sorri mas mantém-se em silêncio]
LM - Estou a defender o Luís porque estive lá e sei o que isto provoca na instabilidade de uma empresa. É impossível que o Estado continue a relacionar-se assim com a RTP e com as empresas públicas em geral. É impensável.
ALM - Nós passámos um ano de 2012/2013 muito complicado. É preciso ter memória. Se bem se lembram, já estivemos para ser privatizados, intervencionados, vendidos, concessionados, um canal, dois canais. E estamos vivos.
LM - O que é extraordinário no comportamento do Estado é que para a mesma empresa em menos de dois anos e meio já defendeu tudo e o seu contrário. Já quis vender um canal, ficar só com um canal, concessionar, uma série de outras variantes e agora, pasme-se, fazer mais quatro canais! O mesmo governo. Isto faz algum sentido? Alguma coerência?
Luís Cunha Velho, que opinião é que, à distância, tem deste monstro que é a RTP?
LCV - Quando olho para as contribuições que o Estado faz para a RTP, penso logo: tomáramos nós, e aqui estou a incluir a SIC, mesmo sem consultar o Luís Marques, ter o orçamento que a RTP tem. Do meu ponto de vista, há uma grande confusão entre aquilo que é serviço público e o que não é serviço público. Esta mistura toda desestabiliza o mercado, porque as empresas deixam de ter os mesmos recursos para concorrer aos mesmos conteúdos.
RTP debaixo de fogo
Deixem-me aqui fazer um bocadinho de advogado do diabo. Também têm obrigações muito diferentes...
LCV - Mas que obrigações é que a RTP tem que a SIC e a TVI não têm? É a pergunta que faço. A SIC tem o seu canal internacional, que dispara para uma série de países do mundo. A TVI tem um canal internacional, que dispara para uma série de países do mundo. Tal como a RTP. A SIC e a TVI têm informação, tal como a RTP. Portanto, a realidade do país é retratada de forma igual por todos os canais. Acha que é uma medida correta, na situação em que o pais vive, existir um canal público que tenha adquirido só para si o Campeonato do Mundo de futebol? Eu não acho normal.
LM - Eu concordo com estas interrogações do Luís Cunha Velho, mas temos de dizer aqui uma coisa, a bem da verdade. A RTP beneficia do facto de pertencer à UER [União Europeia de Radiodifusão]. A questão está é em saber, e isso aliás está a ser discutido a nível europeu, se a UER não está em situação privilegiada.
ALM - Até 2022, os direitos são todos nossos. Depois se verá.
LCV - Até 2022, reparem. 2022 [e enfatiza]. Ora, estamos no fim de 2013.
[A conversa é interrompida pela empregada. "O chefe Tiago pergunta se querem mais petiscos?" A resposta é-lhe dada pela mesa, onde uma das travessas de gambas fritas está imaculada, sem que alguém lhe tivesse metido o dente. Os talheres estão paralelamente colocados sobre os pratos, indicando final de refeição. "Nem pensar. Isto estava tudo ótimo, mas era muita comida", queixa-se Luís Marques. "Mas umas sobremesas, vão?", pergunta com um sorriso a funcionária. António Luís Marinho sorri, olha para o lado, como que buscando a concordância dos restantes comensais, e responde: "Umas sobremesazinhas, vão..." A empregada retira-se]
Luís Marinho, enquanto não vêm as sobremesazinhas, a RTP está aqui sob fogo cruzado das privadas...
ALM [risos] - Já estou habituado. Aquela argumentação de que as privadas também têm canais internacionais é muito bonita, mas eu pergunto: para quê? Existindo um canal internacional público que chega ao mundo inteiro, que é uma coisa que nenhum dos canais consegue, com um canal África que é uma referência no continente africano, para quê se metem os privados nisso? Ou então, se acham que o devem fazer por uma questão estratégica e posicionamento de mercado, que o façam mas não venham depois colocar as coisas ao contrário. Até parece que inventaram a roda: a RTP tem canais internacionais há 15/20 anos. Os privados têm há dois ou três. E temos um contrato de concessão que nos obriga a isso.
LCV - É verdade que a RTP tem há mais tempo canais internacional, mas com alguma programação dos canais privados, ao abrigo de um protocolo que foi assinado.
ALM - E sabe muito bem que esse foi um grande negócio para as empresas privadas, porque ao abrigo desse protocolo a RTP perdeu um minuto e meio de publicidade por hora. Portanto, façam as contas e depois vejam se não foi um excelente negócio. Alem disso, nós denunciámos esse protocolo, não vamos manter programação das privadas nos canais internacionais. Não faz sentido.
LM - Mas há aqui uma questão importante para o futuro da RTP. É este desinvestimento a que se tem assistido, esta sangria de quadros é muito preocupante, porque é a empresa que está a perder capacidade criativa. No meu tempo tinha uma equipa, da qual o Luís Marinho fazia parte, aliás, que conseguia ser criativa, pensar e executar boas ideias. E hoje vejo que a RTP está mais frágil.
ALM - Sim, é verdade. Nos últimos meses, perdemos quadros importantes e não é fácil recuperá-los agora. A RTP tem de ter a capacidade de fazer coisas diferentes, de uma linha que tenha alguma coerência. Temos de dar esse sinal, ter capacidade de arriscar, porque, aí sim, temos essa obrigação. Apostar em formatos originais, apostar na criatividade interna, apostar nos novos talentos nacionais.
[O diabo das calorias volta a aparecer-nos à frente. "Então, o que é que vai ser? Temos baba de camelo, mousse de chocolate e uma tarte merengada de lima." Desta vez, fomos fortes. "Traga só os cafés"...]
O risco e o dinheiro. Ou a falta dele
Eu não queria centrar o foco na RTP e quero aliviar um bocadinho esta conversa, que está pesada. Luís Cunha Velho, já que falamos de arriscar, quem é que arrisca mais? A TVI ainda arrisca alguma coisa?
LCV - Ainda arrisca alguma coisa [risos]? Eu não conheço os riscos da SIC. A TVI arrisca, inova, surpreende.
A Casa dos Segredos é inovação?
LCV - Então não inova? Quem é que tem trazido para Portugal os formatos mais badalados? Quem fez doBig Brother ou da Casa dos Segredos os sucessos que são? Quem é que pôs o país a ver A Tua Cara não Me É Estranha? Vamos à ficção: a TVI faz novelas há 12 ou 13 anos. Vocês veem uma novela desse tempo e uma de agora e veem que há diferenças abissais. Isso é inovação, capacidade de investir, de arriscar. Isso acontece porque criámos uma estrutura que pôs o mercado a mexer, dando trabalho a atores, mudando a linguagem televisiva, reformatando atores consagrados.
A SIC pode também dizer que fez o mesmo com a Informação...
LCV - E pode, de facto. É consensual: a SIC revolucionou a informação televisiva em Portugal. Mas a TVI inovou na ficção e no grande entretenimento. O Rising Star, uma das nossas apostas para 2014, não é inovação? Um programa completamente interativo...
A SIC andava também atrás dele...
LM - Ai andava [sorriso]?
LCV - É um formato inovador, como o Big Brother foi na época. A TVI tenta encontrar sempre conteúdos que surpreendam. Umas vezes melhor, outras vezes pior. Agora, temos é que redimensionar os projetos à realidade portuguesa.
Os tempos das vacas gordas, os valores de produção que o grande entretenimento tinha não voltarão, pois não?
LM - Impossível. Não voltaremos a ter esse dinheiro.
ALM - A crise fez-nos descer à terra.
LCV - Eu não acho que nos tenha feito descer à terra, acho é que obrigou as empresas a redimensionar-se, porque só vivem da publicidade, A gestão hoje é muito mais rigorosa. Porque se não agradarmos aos espectadores e aos anunciantes, estamos mortos.
ALM - Já agora que fala disso, deixem-me voltar atrás. Um dos outros mitos que existem sobre a RTP é que a gestão é má, que aquela empresa é um poço sem fundo, que gasta a rodos, que não há limites. E eu gostava de dizer que isso é completamente mentira.
LM - Pois é.
ALM - É mentira. Os últimos conselhos de administração fizeram um trabalho exemplar. Em algumas situações peço meças a quem quiser. Criam-se aqui alguns mitos que é preciso desmistificar. As empresas privadas vivem só da publicidade, mas quando se fizeram concursos aos quais as privadas concorreram, já se sabiam as regras do jogo. É que ouço-vos sempre a invocar isso, como se as regras do jogo tivessem mudado a meio. Não mudaram. Sempre foi assim.
LCV - Mas o mercado é que mudou, Luís.
ALM - Pois mudou, mas isso é a vida.
LCV - Pois é, mas vamos lá ver uma coisa: 20 anos depois a realidade é completamente diferente.
ALM - Felizmente para os privados. Desgraçados dos privados se vivessem com as regras que havia para o sector público há 20 anos. Já tinham falido.
LCV - Mas quantos funcionários é que a RTP tem?
ALM - Mil oitocentos e qualquer coisa.
LCV - Pronto, quantos funcionários é que a SIC tem?
LM - Só a SIC tem à volta de 500 pessoas. Depois a GMTS, que é a nossa operadora, tem cento e tal pessoas. Portanto, grosso modo, o grupo SIC são 700 pessoas.
LCV - Os trabalhadores da TVI são cerca de 450 pessoas.
ALM - E quantas pessoas tem a produtora do grupo, a Plural?
LCV - Não sei responder, mas isso é outra coisa.
ALM [gargalhada] - Não, não é outra coisa. Porque grande parte da produção da RTP é feita por pessoas da RTP. E isso não existe na TVI. Quantas pessoas tem a TVI Madeira?
LCV - Não existe.
ALM - E a RTP Açores?
LCV - Não existe.
ALM - Pois, só aí, no caso da RTP, são 350 pessoas.
Trezentas e cinquenta pessoas para fazer os canais Madeira e Açores? E é preciso tanta gente?
ALM - Exatamente. Eles fazem rádio e televisão. Acho que não é preciso tanta gente, de facto, mas é o que há. É isso que estamos a analisar. E a TVI Porto, Luís [Cunha Velho]?
Não se esqueça que o Marinho e o Marques são jornalistas de profissão. Já viu como é que eles fazem perguntas, não já? [risos]
LCV - Já vi, já vi. Estou aqui debaixo de fogo [gargalhada].
ALM - Não está nada. Mas a TVI Porto deve ter meia dúzia de pessoas. Na RTP Porto são 350. Portanto, só para os canais regionais e para a RTP Porto, estamos a falar de 700 pessoas.
LCV - Se eu falasse do grupo, também tinha outros valores.
ALM - Ah, pois, mas quando se fala de RTP, tem de se falar de um todo.
LCV - Não, porque nós estamos a falar de televisão, porque se falamos de rádio, a Media Capital Rádios também tem recursos, também tem orçamentos.
ALM - Eu sei, mas onde é que eu quero chegar com esta conversa? É só para deixar isto bem claro: é que quando se fala de RTP, as pessoas pensam na RTP1, e quando nós, honestamente, dizemos que trabalham naquela empresa 1800 pessoas, o que a maior parte dos portugueses pensa é "para que é que são precisos 1800 gajos para fazer a RTP1? Por isso é que aquilo está como está". Mas a realidade não é essa. Nós temos 1800 trabalhadores para toda a operação: dois canais de televisão nacionais, dois canais regionais, dois canais no cabo, dois canais internacionais, três rádios nacionais, duas rádios regionais, duas rádios internacionais, outras rádios na internet, um centro de produção com as responsabilidades do do Porto, delegações em todo o país e em muitos pontos do mundo.
LCV - Mas eu nunca disse que a RTP era mal gerida.
ALM - Sim, eu sei, isso é pacífico. Mas só para rematar, a RTP, no final de 2013 está com um défice de orçamento previsto que anda entre 30 e 40 milhões, que não sabemos onde os vamos buscar. Que tem que ver com o corte radical da indemnização compensatório e do valor que decorre da contribuição do audiovisual, que, apesar de ter subido, não cobre o diferencial.
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