Começaram por ser presenças esporádicas, mas acabaram por tornar-se fixas. Rubricas médicas nos programas de daytime vieram para ficar e são um verdadeiro fenómeno. Responsáveis dos canais explicam que esta aposta é "serviço público" e os médicos ganham reconhecimento e... pacientes. A Ordem dos Médicos deixa elogios.
Num piscar de olhos a sala de estar transforma-se num consultório. Os pacientes são os milhares de portugueses que assistem aos programas de daytime que, nos últimos tempos, já não vivem sem rubricas de saúde, nas suas mais diferentes especialidades. "A medicina está na moda e há modas que são espetaculares. Esta moda da medicina é boa e a prova disso é que todas as estações apostam em rubricas deste género", considera o médico João Ramos, que o público conhece como o responsável pelo espaço Médico de Família, integrado no programa Agora Nós, da RTP1.
Para Júlia Pinheiro, apresentadora de 'Queridas Manhãs' da SIC, o segredo da popularidade destes segmentos prende-se com o facto de "o acesso à saúde para a maior parte das pessoas ser muito caro". A rubrica 'Os Doutores' - importada do original da CBS The Doctors - iniciou-se há três anos no programa Boa Tarde, apresentado por Conceição Lino, que terminou no início de outubro, e migrou para as manhãs da SIC na mesma altura. E por lá se mantém, sendo um dos momentos do programa com mais sucesso. "Cada vez mais tudo o que tem que ver com saúde transformou-se numa matéria de preocupação. E julgo que também tem que ver com o envelhecimento da população que impõe que se traga mais vezes à antena estes temas. Acho que estamos a fazer serviço público", frisa a também diretora de Gestão e Desenvolvimento de Conteúdos da estação de Carnaxide, segundo informação da revista Notícias TV.
Quem partilha esta opinião é Tânia Ribas de Oliveira. "Trata-se de uma mensagem clara de serviço público, mesmo que não seja no canal público." A apresentadora de Agora Nós não tem dúvidas de que "esta é uma tendência internacional", uma vez que "qualquer programa de daytime lá fora tem uma rubrica de saúde". Na sua opinião, prossegue, a importância destes espaços está relacionada com o facto de "cada vez mais o público ter consciência das fragilidades da saúde em Portugal e de que forma é que se pode prevenir uma série de situações, quer sejam doenças quer um simples desconforto".
Na TVI, os espaços dedicados à saúde dividem-se entre os programas Você na TV e A Tarde É Sua. Cristina Ferreira frisa que a aposta em questões de saúde acontece desde sempre "porque esta é uma temática que vai muito ao encontro daquilo que os espectadores pretendem saber". "Aqui desmistificamos também o que está relacionado com uma série de doenças e que vamos intercalando e intervalando", observa a diretora de conteúdos não informativos da estação de Queluz de Baixo. Fátima Lopes acrescenta: "Não há semana em que não falemos de saúde, com variados especialistas, mas decidimos ir mais longe e criar um espaço em que transformamos a vida de alguém através da saúde oral, por isso criámos o Senhor Doutor", destaca.
Linguagem descontraída é chave
A linguagem e o vocabulário médico são, na maior parte das vezes, um obstáculo na comunicação entre médico e paciente. E é precisamente esse entrave que estes espaços de saúde querem ultrapassar, pela voz dos especialistas presentes em estúdio. Sílvia Roque, ginecologista que é presença assídua no programa matinal da TVI, tem essa premissa em mente. "É importante explicarmos as coisas de maneira simples, não é chegar ali e dizer jargões médicos que ninguém vai entender. Temos de ter o dom, e nem toda a gente tem, de saber explicar as coisas de maneira a que o público perceba", salienta.
João Espírito Santo, médico dentista responsável pela rubrica de A Tarde É Sua e também colaborador do formato Consultório, do Porto Canal, garante que o segredo é não perder a identidade. "Eu sou eu próprio. Sou o mesmo na minha clínica e na televisão. Se calhar é essa a chave. Falo exatamente da mesma forma como falo com os meus doentes, que são seres humanos, não são médicos. Uso uma linguagem simples e elucidativa, prática."
A popularidade que conseguiu granjear no espaço Olhar Clínico na SIC Mulher catapultou Pedro Lopes para a SIC generalista. O médico elogia a aposta dos programadores nestes espaços. "Antigamente os médicos que participavam nestes programas não tinham muitas competências de comunicação e por isso afastavam-se um bocadinho das pessoas. Seguramente que há muitas pessoas melhores do que eu nos assuntos de que falo, mas a forma como eu o faço, ou os meus colegas em Os Doutores, chega às pessoas de forma simples, descontraída e bem-disposta, o que acaba por fazer que o público esteja mais atento e valorize este segmento", frisa. Para Sérgio Pinto, outro dos especialistas da rubrica de Queridas Manhãs, "uma postura descontraída" é o remédio para ultrapassar a barreira da comunicação. "É importante estarmos próximos da população, tentando não usar uma linguagem muito técnica, o que não facilita nada. Devemos usar conceitos e ideias muito práticas e ajustadas à população, o que traz vantagens no esclarecimento."
Sempre que uma emissão de A Tarde É Sua conta com um médico em estúdio, a apresentadora Fátima Lopes tem o cuidado de alertá-lo para falar numa linguagem "simples e clara". "Reúno com eles, ajudo-os, explico-lhes e ensino-os a usarem uma linguagem que seja televisiva. Faço-os perceber que não é um congresso, uma palestra para os colegas, que têm de falar para o público em geral, que pode não saber absolutamente nada sobre aquele tema", conta a apresentadora.
Destruir mitos e ideias preconcebidas é outros dos objetivos de quem veste bata branca na TV. "Há coisas tão simples como as infeções urinárias que as mulheres não percebem nada. Tenho senhoras que chegam aos 70 anos e que pensam que apanhar uma infeção urinária no tampo da sanita ainda é possível. Tenho de explicar que não, isso é o que eu adoro fazer, desmistificar", salienta o médico João Ramos.
Além de ser ginecologista, Sílvia Roque tem um mestrado em sexologia. A especialista está empenhada em fazer que se fale de sexo "de uma maneira muito natural, que é como deve ser tratado". "Com a parte científica, mas de uma forma engraçada. É muito importante desmistificar muitas coisas que ainda são tabu, como por exemplo a ideia de que as mulheres não podem pôr as mãos na vagina", exemplifica.
Popularidade trouxe mais pacientes
O Médico de Família da RTP1 admite sem rodeios que a sua visibilidade na televisão se refletiu no número de pacientes que o procuram hoje, apesar de se terem passado apenas quatro meses desde a estreia. "Foi um processo lento. Notei um aumento em todos os sítios em que trabalho, obviamente. E notei outra coisa. Para além de me trazer novos doentes, trouxe-me mais vezes os doentes. Passam a ir mais, porque passaram a validar mais. Trabalhava muito bem antes de chegar a RTP, mas o programa veio trazer-me mais doentes", admite o médico.
Já Pedro Lopes salienta o facto de a sua presença no pequeno ecrã ter gerado os aplausos por parte do público e também por parte dos seus pares. "Um aspeto interessante foi o reconhecimento dos meus colegas. Eu tinha algum receio do feedback porque nestas coisas há sempre muitas invejas porque acham que são mais competentes do que nós, e no meu caso foi ao contrário. Há imensas pessoas que me dão feedback positivo e que me dizem que ainda bem que há alguém jovem e que consiga comunicar bem. Mesmo o meu livro, que lancei no âmbito do Clube do Livro SIC, acabou por ter muita aceitação por profissionais de saúde", destaca. Em menos de um ano, o médico ganhou "oito mil seguidores no Facebook" e recebe "diariamente verdadeiros pedidos de consulta online".
Pioneiro nestas andanças, Miguel Stanley tornou-se um rosto conhecido dos portugueses através dos formatos Doutor Preciso de Ajuda e Dr. White [ver caixa]. "As pessoas ainda se lembram com bastante carinho do Dr. White. Foi um formato muito visível, já que foi exibido no primetime da SIC. Ainda hoje recebemos muitas cartas. Fazemos caridade, mas de forma reduzida porque há um negócio a gerir, mas tentamos. Principalmente com as crianças", revela. Ainda assim, e apesar de ter integrado a equipa inicial de Os Doutores, o médico acabou por deixar o espaço da SIC. "Gostava muito de fazer o programa, mas as pessoas têm de evoluir e fui para os EUA fazer a versão The Doctors lá", acrescenta.
Pelo contrário, João Espírito Santo destaca que o seu percurso televisivo lhe trouxe "mais inimizades" e "pessoas a terem inveja e a difamarem". "A parte má foi toda a inveja, o diz-que-disse, para o qual não tenho paciência. Muitos médicos são invejosos, críticos em vez de fazerem diferente, comunicarem o que fazem e apoiarem. O que fazem é destruir. Eu sou mais apologista de construir", frisa o médico dentista, deixando um aviso: "Quem pensa que a televisão é a prancha de salvação, engana-se."
No que toca às audiências, Fátima Lopes conta à Notícias TV que o espaço Senhor Doutor, exibido às quartas-feiras no programa A Tarde É Sua, "tem um pico de audiência". "Há pessoas que quando ligam o televisor fazem-no diretamente para ver o espaço do Senhor Doutor. É mais do que um especialista que está ali, ele põe os seus ensinamentos na área da saúde ao serviço de uma família." Também no Queridas Manhãs as audiências sobem quando Os Doutores estão em antena: "É a informação que me dão, de que este segmento e o de crime permitem à SIC aproximar-se das audiências da TVI nas manhãs", diz Pedro Lopes.
Eles são reconhecidos na rua... mesmo sem bata branca
Para lá do aumento do volume de negócio, estes médicos já sentem na pele o sucesso das rubricas pelas quais dão a cara. À semelhança de outras figuras que aparecem na televisão, também eles são reconhecidos na rua. "Em alguns sítios já me abordam, como na alfândega e em alguns cafés. Sobretudo as avozinhas, que se mostram zangadas comigo porque eu costumo dizer no programa que elas por vezes estragam os netos", exemplifica Sérgio Pinto, entre risos. João Ramos, por sua vez, tem recebido vários elogios: "Fico sempre muito orgulhoso, porque o comentário que mais me fazem é de que eu explico muito bem as coisas." Também Pedro Lopes ouve elogios: "As pessoas reconhecem-me sobretudo pela voz, mais do que pela imagem, até porque eu não ando de bata na rua", afirma.
Já João Espírito Santo ainda não se sente muito à vontade com certas abordagens do público, apesar de ter começado a surgir em antena há quase uma década. "O que me incomoda mais é abordarem-me quando estou com os meus filhos. Gosto de levar a minha vida pacata e às vezes tenho abordagens especiais, digamos assim. Já me aconteceu pessoas agarrarem-se aos meus filhos e dizerem-lhes para eles me pedirem para as levar ao programa", afirma, reconhecendo em seguida: "Tudo isto é possível porque as pessoas acreditam em nós. Caso contrário não o fariam", destaca.
E o futuro, por onde passa?
"Estas rubricas não são indispensáveis, mas são uma mais-valia importante." A opinião é de Fátima Lopes, que não tem dúvidas de que "hoje em dia não se pode fazer televisão sem emoção". "A televisão sem emoção é algo que o espectador não quer. Temos de transmitir coisas, o público tem de vibrar quando vê. Tem de ter algum impacto dentro de nós e isso é televisão com emoção. E é isto que a televisão vai querer cada vez mais", assume à Notícias TV.
O médico João Espírito Santo vai mais longe e não tem dúvidas de que rubricas como estas serão indispensáveis "se houver evolução, se só se falar do mau hálito ou das cáries, as pessoas vão saturar-se". "Se tivermos o objetivo de fazer bem, diferente, comunicar, fazer bem ao próximo, faz todo o sentido", aponta. Sérgio Pinto acrescenta: "Terá de haver outras formas de serem apresentadas. Podem tornar-se muito monótonas se for sempre o mesmo tema. Mas a saúde é muito importante, então para a população portuguesa, toda a gente fala e toda a gente opina. E é muito importante. Mas acima de tudo a forma como são feitas tem de ser bem conseguida. Se se tornar muito sério, muito formal, não sei se atingirá muito a população."
À semelhança do que acontece no estrangeiro e do que já se deu também em Portugal, o futuro poderá passar por programas de medicina independentes. "Adorava que houvesse um programa isolado. O nosso problema é que não temos horário, mas ainda não desisti de encontrar o Dr. Oz português", relata Júlia Pinheiro. Cristina Ferreira reconhece que o cabo pode ser o futuro: "Rubricas deste género podem tornar-se programas independentes, veja-se o caso do Dr. Oz, mas não me parece que a nível das televisões generalistas isso vá acontecer nos próximos tempos. Mas nos canais por cabo poderia existir", prevê. João Ramos sabe bem disso, até porque recebeu convites nesse sentido. "Comecei a fazer o Agora Nós e na semana a seguir tive um contacto através da SIC Mulher, que já estava a falar num programa completo, mas penso que ainda é muito cedo. Acho que o futuro é fazer um programa mesmo só sobre medicina. Eu gostaria muito", revela.
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