A atriz que dá vida a Dulce em 'Sol de Inverno' elogia o facto de a novela abordar a atualidade de forma natural e está satisfeita por a sua personagem não ser linear. Fala das saudades do Porto e do futuro do país.
Estamos na cozinha do Museu Nacional do Teatro, em Lisboa. Porque escolheu este local para a entrevista?
É um local que adoro. Tem uma envolvente lindíssima e guardo boas memórias. E também porque fiz aqui o monólogo Salazar - Deus, Pátria, Maria, que foi feito exatamente nesta cozinha. Gosto de vir para aqui estudar os meus textos, é um sítio que me transmite muita calma.
Em Sol de Inverno dá vida a Dulce, uma mulher que não tem andando muito calma nos últimos tempos...
Ela tem uma variante muito interessante. Além de ser a cozinheira da casa de Laura [Maria João Luís] tem uma outra parte da sua vida, o filho, a quem tolera tudo, mas não gosta da namorada que ele arranjou. Mas a guerra da Dulce é com as substitutas, por causa da doença que ela tem, e mostra uma faceta que é um bocadinho torta e maldosa.
Essa súbita mudança de personalidade dá-lhe gozo?
Prefiro papéis que tenham surpresas, não gosto de personagens lineares. Acho que nas personagens de camadas sociais mais populares se encontra mais riqueza de emoções e sentimentos. Mas isto não é regra geral. No caso da Maria João Luís, a sua personagem, a Laura Aragão, é surpreendente.
Sol de Inverno foi apresentada como "a novela". Qual é a sua opinião?
É uma novela que tem um envolvimento com as pessoas muito interessante. E digo isto sem problema porque quando não gosto das coisas digo. Para mim é uma das melhores novelas que fiz nos últimos tempos.
Quando fala da envolvência com as pessoas refere-se à abordagem de temas da atualidade?
Também. E sobretudo porque são feitos de uma forma natural e discreta. E isso é importante, porque estar a fazer disto uma missão didática não vale a pena. Seja a homossexualidade, os problemas de saúde, etc. Se esses assuntos existem na realidade então vamos pô-los, mas não como se fossem publicidade do género: olhem que bem que a gente trata este assunto.
Ao longo da sua carreira em televisão já deu vida a outras governantas e agora em Sol de Invernovolta a fazê-lo. Sente que tem feito sempre os mesmos papéis ou acha que tem havido variedade?
Acho que tem sido variado. São muitas avós, amas e também governantas. Mas também já fiz papéis cómicos, já fiz de secretária, etc.
Faz televisão porque gosta ou tem de ser?
Fui atriz de teatro durante quase 40 anos e tinha parâmetros muito diferentes. São outras linguagens. Sei que tenho poder de escolha e sentido crítico e, quando fui fazer a primeira novela, achei engraçadíssimo porque era outro mundo, e eu gosto de conhecer várias coisas. Mas a televisão é realmente fascinante e quando lá estamos é uma espécie de veneno que se vai introduzindo na pele.
"Temos de aprender a sair. E tenho medo de não ser capaz de sair"
Mudou-se da Plural para a SP Televisão? Como foi esse processo?
Não podia estar hesitante em sair da Plural porque não fui convidada para mais novelas. Pensei que ia ter algum projeto, mas não aconteceu. Como não era exclusiva, era natural que não seria em mim que pensariam uma vez que eles têm trabalhadores nessas condições. Ainda esperei bastante, mas não havia certeza de coisa nenhuma. E nós temos de procurar trabalho e, se nos aparece, mais vale aceitar, por todas as razões. Ainda por cima com a minha faixa etária... Não há muito trabalho para pessoas com mais de 60 anos.
Sente isso?
Sinto. Muitas vezes fala-se das novelas brasileiras. Eles também têm um elenco de atores jovem que é muito bom, mas que é suportado por atores mais velhos. Não podemos negar aquilo que existe. Há mães, há avós, há senhoras e senhores de idade à frente das coisas.
Estou a lembrar-me de Amor à Vida, por exemplo, que tem António Fagundes e Suzana Vieira com papéis de grande destaque...
Por mais recauchutados que eles estejam, que é uma das obsessões das pessoas que me irritam profundamente, eles estão lá. Se bem que já fui mais radical relativamente a isso. Se uma pessoa não gosta do nariz e o quer mudar, tudo bem. Agora fazer disso uma obsessão? Não entendo. Envelhecer é uma arte.
Mas se calhar nem toda a gente está preparada para essa arte...
Faz-me imensa impressão. Não se pode viver em função dos gramas que se engorda de manhã e que se tem de perder até às cinco da tarde. E falo sem problemas porque tenho 69 anos, não sou nenhum catálogo de beleza, mas estou bem. Tenho a minha cabeça fresca, tenho poder de escolha e isso para mim é muito importante. E talvez saiba representar.
Não vai querer ver-se livre das suas rugas?
Não. Há quem diga que cada ruga é uma história. Não devo ter muitas histórias porque não tenho assim tantas rugas [risos]. A minha luta neste momento é aprender a lidar com o fim...
Já começa a pensar nisso?
Penso sem querer. Temos de lidar com o fim que é a grande abdicação. Tanto com o fim natural como com o fim daquilo que fazemos. Esse é que é o drama dos atores e das atrizes. Quando temos 20, 30 ou 40 anos não é tão premente. Mas quando estamos no pico da curva, a descida é vertiginosa. Temos de aprender a sair, e eu tenho medo de não ser capaz de sair e de pensar que ainda sou uma coisa que já deixei de ser. O pneu da barriga não importa muito.
"A minha alma contestatária anda muito para baixo"
Nasceu em Lisboa, mas cresceu no Porto. O que guarda daquela que considera ser a sua cidade?
Guardo percursos, amizades, amores, desamores e guardo a saudade enorme dos meus pais.
E quando lá vai o que sente?
Quando atravesso a ponte D. Luís há qualquer coisa que me invade de nostalgia, bem-estar. Acho as pessoas do Norte muito alegres, disponíveis e mais engraçadas. A única coisa que não gosto é do FC Porto...
Então, qual é o seu clube?
Posso dizer?
Claro...
É o Benfica [sorri].
Mas é mesmo apaixonada por futebol?
Gosto. Acho bonito. Não estou a falar do que está por detrás das bancadas, mas gosto daquela matemática: se ganharmos por dois ficamos em x posição, se perdermos ficamos em y. As pessoas que me rodeiam gostam todas de futebol. A minha neta mais velha chegou a jogar futebol no Estádio Universitário. Não sou a tontinha da bola, mas aprecio ver um Real Madrid-Atlético de Madrid, acho lindíssimo.
Sei também que tem uma alma contestatária, algo que vem da juventude...
A minha alma contestatária anda muito para baixo...
Porquê?
A certa altura já me sinto a remar contra a maré. Fui contestatária. Há meses desci o Chiado numa campanha autárquica de fiz parte.
De qual candidato?
Fiz parte da comissão do António Costa. É uma pessoa que estimo muito e que sabe separar a política da politiquice.
O que espera deste país?
Há uma coisa que sempre me preocupou muito que são as desigualdades sociais. Custa-me horrores o que se está a passar. E não me venham com tretas que tem de ser assim, porque não tem. Não se pode magoar as pessoas assim. É claro que isto é um acumular de muitas coisas, mas que estamos a vender-nos a uma determinado Europa, estamos.
NTV
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